Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro
Mírian Rachel de Jesus Soares
O culpado é o mordomo?
Constrangimentos outros (que não os do modelo econômico) à seguridade social
Maria
Lucia Teixeira Werneck Vianna
Este
artigo não tem, contudo, a intenção de discorrer sobre os descaminhos da
seguridade social no Brasil. Razões e mecanismos usados para desvirtuar o
projeto constitucional já foram bastante explorados na literatura. Antes
propõe-se a discutir um processo que ocorreu paralelamente ao desmonte da
seguridade social: o esmorecimento do debate, sobretudo do debate acadêmico, em
torno dos princípios implícitos na concepção inscrita na Constituição de 1988.
Pois tal debate não só animou vivamente a agenda de profissionais e estudiosos
envolvidos com a chamada questão social por um largo período como teve presença
fundamental na elaboração do capítulo que consagrou a noção de seguridade na
carta.
O
pensamento social moderno, seja na forma de ciência – as ciências sociais - ,
seja na forma de ideologia (ambas formas legítimas com que vem se expressando
através dos tempos) é rico em antinomias. Universalismo x focalização é uma das
que no momento frequentam, com assiduidade, as agendas de reflexão, das
propostas e de práticas no universo das políticas públicas. Sua atualidade, uma
vez relacionada ao renovado imperativo de enfrentamento da questão social –
também está atualizada no cenário contemporâneo de reestruturações várias – não
exangue as imbricações que mantém com outras antinomias. Em particular, com a
antinomia clássica que, desde o alvorecer da modernidade, consome esforços dos
pensadores: igualdade x liberdade. É então que as deias de liberdade e
igualdade galgam destaque, assumindo contornos preservados até hoje: liberdade
como ausência de restrições à escolha individual e igualdade como condição da
própria humanidade.
Duas
concepções de igualdade (tanto no campo da reflexão quanto no campo das
proposições) confrontam-se nos debates acerca da solução conciliatória
representada pela política social: a concepção de igualdade como ‘resultados
mais igualitários’ e a concepção de igualdade como ‘iguais oportunidades’ para
todos. Duas noções de liberdade também se distinguem. Na primeira, a liberdade
é vista como ausência de restrições ao exercício do livre-arbítrio. Entre essas
restrições enquadram-se certas incapacidades dos próprios indivíduos, como o
analfabetismo ou a extrema penúria, que agem como obstáculos à livre escolha e
que poderiam ser reduzidas. A segunda entende a liberdade como exercício
positivo do livre-arbítrio, como liberdade positivada, para o que estipula como
necessária a presença de capacidades, ou melhor, a presença de elementos
propiciadores de tais capacidades ou, ainda, a presença de direitos
substantivos e palpáveis.
O
famoso texto de Marshal que defini a cidadania como conjunto de direitos
acumulados historicamente, direitos civis, político e sociais é de 1949
(MARSHALL, 1967). E cidadania é entendida como uma medida e igualdade aplicada
sobre uma sociedade de livres desiguais.
No
Brasil, como sugerido antes, a inspiração do movimento de ideias que,
convergindo com outros vetores, culminou na Constituição Federal de 1988 veio
da concepção Estado de bem-estar social.
A
concepção de política social que hoje prevalece se apresenta como (ou adquiriu
o status de) política social, no pressuposto implícito de que a realidade (que
além de autoexplicativa se tornou impositiva) assim o demonstra.
Essa
predominante concepção de política social possui dois traços que tipificam como
inovadora, no sentido acima referido, e que a enquadram na categoria de
legítima representante da concepção liberal revisitada. Um deles é o estímulo à
empreendedora atividade empresarial como instrumento de inclusão social. O
outro consiste no ‘novo’ assistencialismo, caracterizado por transferências de
renda aos pobres com condicionalidades.
Do
entendimento reducionista de que a questão social é a pobreza (uma potente
premissa teórica) decorre a acepção de que política social tem por função
proteger os pobres, o que está longe de alinhar em concordância os cientistas
sociais.
Um
segundo conjunto de premissas, intrinsecamente ligado ao anterior, tem por
epicentro a definição de pobreza como uma situação em que indivíduos se
encontram por falta de certos dotes ou assets
(BANCO MUNDIAL, 2000) que uma vez adquiridos, habilitam-nos a pular a linha da
pobreza.
Os
direitos e sistemas universais acessíveis aos pobres são, pois, formas de
compatibilizar igualdade e liberdade, pelas quais e mediante as quais todos se
tornam cidadãos (sociais), todos podem fazer escolhas. Pretensamente inovadora,
essa ilusão de compatibilizar igualdade e liberdade, que a concepção liberal
revisitada encerra, foi desmitificada por Marx com sarcasmo, há mais de cem
anos: o mundo que imagina se circunscreve à esfera da circulação de
mercadorias, onde “só reinam a liberdade, a igualdade, a propriedade e Bentham”
(Marx, 1970, p87)
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